domingo, 12 de abril de 2009

diálogos selecionados


mistery train - jim jarmusch
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Pedi um chope pequeno, e ela, um suco de uva.
- Quase não a reconheço atualmente - disse eu.
- É a fase - respondeu desinteressada, bebendo o suco com o canudinho.
- Que fase? - perguntei.
- Uma adolescência atrasada, acho. Quando me levanto de manhã e vejo meu rosto no espelho, parece o de outra pessoa. Se não tomo cuidado, acabo sendo deixada para trás.
- Então não é melhor simplesmente deixar rolar? - disse eu.
-Mas se perco a mim mesma, onde poderei ir?
- Se for por alguns dias, pode ficar na minha casa. Será sempre bem vinda. O você que perdeu você.
Sumire riu.
- Deixando a brincadeira de lado - disse ela - , aonde será que estou indo?
- Não sei. pense no lado bom. Deixou de fumar, está vestindo roupas bonitas e limpas, até suas meias agora combinam, e pode falar italiano. Aprendeu a avaliar vinhos, usa um computador e, pelo menos por enquanto, dorme à noite e acorda de manhã. Você deve estar indo a algum lugar.
- Mas continuo sem escrever uma linha.
- Tudo tem seus altos e baixos.
Sumire contorceu os lábios.
- Chamaria o que estou passando de deserção?
- Deserção?
Por um momento, não entendi o que ela quis dizer.
- Deserção. Trair suas crenças e convicções.
- Refere-se a conseguir um trabalho, se vestir bem e desistir de escrever romances?
- Exato.
Balancei a cabeça.
- Você sempre escreveu porque queria. Se não quer mais, por que deveria? Acho que ter parado de escrever vai fazer com que a cidade seja destruída pelo fogo? Com que um navio afunde? Com que as marés se confundam? dificilmente. Não creio que ninguém chame isso de deserção.
- Então, como devo chamar?
Balancei a cabeça de novo.
- A palavra deserção é forte demais. Ninguém mais a usa. Vá a alguma comuna remanescente e, talvez, as pessoas ainda empreguem essa palavra. Não conheço os detalhes, mas, se não quer mais escrever, é assunto seu.
- Comuna? Diz os lugares que Lenin fez?
- Aqueles eram kolkhoz. Não sobrou nenhum, aliás.
- Não é que eu queira deixar de escrever - disse Sumire.
Ela refletiu por um momento.
- É só que, quando tento escrever, não consigo. Sento-me à mesa e não me vem nada. Nenhuma idéia, nenhuma palavra, nenhuma cena. Zero. Não faz muito tempo, eu tinha milhões de coisas sobre o que escrever. O que será que está acontecendo comigo?
- Está me perguntando?
Sumire assentiu com um movimento de cabeça. Bebi um gole do meu chope gelado e organizei os pensamentos.
- Neste instante, acho que está se posicionando em uma nova estrutura ficcional. Está preocupada com isso, portanto não há necessidade de colocar seus sentimentos na escrita. Além disso, está ocupada demais.
- Você faz isso?
- Acho que a maior parte das pessoas vive em uma ficção. eu não sou exceção. Pense nisso em termos da engrenagem de um carro. É como um câmbio entre você e a realidade austera da vida. Pega a força de fora, em estado natural, e usa as marchas para ajustá-la de modo que fique tudo sincronizado. É assim que mantém seu corpo frágil intacto. Isso faz algum sentido?
Sumire balançou levemente a cabeça.
- E ainda não estou completamente ajustada a essa nova estrutura. É isso que o que está dizendo?
- O maior problema neste exato instante é que você não sabe com que tipo de ficção está lidando. Não conhece a trama. O estilo ainda não está definido. A única coisa que sabe é o nome da personagem principal. Não obstante, essa nova ficção está reinventando quem você é. Dê-lhe tempo, ela a trará debaixo da asa, e você poderá ter o vislumbre de um mundo totalmente novo. Mas ainda não chegou lá. O que a deixa num situação precária.
-Quer dizer que tirei a velha engrenagem, mas ainda não terminei de parafusar a nova. E o motor continua funcionando. Estou certa?
Sumire fez a cara soturna de sempre e bateu o canudinho no gelo desafortunado em seu copo. Por fim, ergueu os olhos.
-Entendo o que quer dizer com precário. Às vezes, eu me sinto tão...sei lá...sozinha. O tipo de sentimento de impotência quando tudo a que se está acostumado foi desperdiçado. Como se não houvesse mais a gravidade, e eu fosse deixada à deriva no espaço sideral. Sem a menor idéia de para onde estou sendo levada.
- Como um pequeno Sputnik perdido?
-Acho que sim.

de Minha Querida Sputnik - Haruki Murakami - amor da minha vida!

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