segunda-feira, 24 de agosto de 2009

la duras

"Ela estaria sempre pronta, consentindo ou não. É neste ponto preciso que você nunca saberá nada. Ela é mais misteriosa que todas as evidências externas conhecidas até ali por você.
Você nunca saberá também, nem você nem ninguém, nunca, sobre como ela pensa o mundo e você, o seu corpo e o seu espírito, e essa doença pela qual ela diz que você está tomado. Ela mesma não sabe. Ela não saberia dizê-lo a você, você não poderia nada descobrir sobre isso com ela.
Jamais você saberá, nada, nem você nem ninguém, do que ela pensa de você, desta história. Qualquer que seja o número de séculos que encubra o esquecimento das suas existências, ninguém o saberá. Ela, ela não sabe sabê-lo."
...
"Os olhos estão fechados sempre. Dir-se-ia que ela repousa de uma fadiga imemorial. Enquanto ela dorme você esquece a cor dos seus olhos, do mesmo modo que o nome que você lhe deu na primeira noite. Depois você descobre que não é a cor dos olhos que seria para sempre a fronteira intransponível entre ela e você. Não, não a cor, você sabe que esta cairia entre o verde e o cinza, não, não a cor, não o olhar.
O olhar.
Você descobre que ela o olha.
Você grita. Ela se vira para a parede.
Ela diz: Isso vai ser o fim, não tenha medo."
...
" Um dia ela não está mais ali. Você acorda e ela não está mais ali. Ela partiu na noite. A marca do corpo está ainda nos lençóis, ela está fria. è a aurora hoje. Não ainda o sol, mas as bordas do céu estão já claras enquanto que do centro desse céu a obscuridade cai ainda sobre a terra, densa. Não há mais nada no quarto além de você só. O corpo dela desapareceu. A diferença entre ela e você se confirma pela ausência súbita.
Ao longe, nas praias, gaivotas gritariam na escuridão que termina, elas começariam já a se nutrir dos bichos da vasa, a revistar as areias deixadas pela maré baixa. No escuro, o grito louco das gaivotas famintas. Parece-lhe repentinamente nunca tê-lo ouvido."

fragmentos de A Doença da Morte, de Marguerite Duras

sábado, 8 de agosto de 2009

"Pergunta:
Como fazer para não perder tempo?
Resposta:
Sentí-lo em toda sua extensão.
Meios:
Passar os dias na sala do dentista numa cadeira desconfortável; viver as tardes de domingo na varanda; ouvir conferências numa língua que não se compreende; escolher os itinerários de trem mais longos e menos cômodos e viajar à pé, naturalmente; fazer fila na bilheteria dos espetáculos e não ocupar o seu lugar etc."
do diário de Tarrou, em A Peste, de Albert Camus